Junto aos rios
mirrados da Babilônia, judeus exilados certa vez choraram ao se lembrarem de
Sião, a sua “maior alegria”, os opressores pediam que cantassem uma música, mas
como entoariam cânticos estando em terra estranha?(Sl 147). A resistência nostálgica dos judeus em se dobrar ante os
ditames do império babilônico nos tempos bíblicos tem sido usada por muitos intelectuais
para ilustrar a resistência da poesia em nossos dias. Exilada em uma terra
idólatra e soberba, tal qual a Babilônia, onde nomear as coisas já não faz
parte de sua alçada e onde a contemplação espiritual e a sensibilidade são
substituídas pelo utilitarismo e a rotina, características intrínsecas da
modernidade, a poesia resiste utilizando-se de formas estranhas, opondo-se como
pode à opressão da ideologia dominante.
No texto-manifesto Poesia Resistência, Alfredo Bosi,
descreve os caminhos dessa resistência. Cativeiro, inimigo e opressão são palavras
recorrentes na obra e atestam a visão da poesia encarcerada, buscando
alternativas para sobreviver em um ambiente hostil. Muito se tem discutido
acerca da utilidade e da sobrevivência da poesia na modernidade e o certo é que
a poesia não consegue e não quer integrar-se ao discurso atual da sociedade, procurando
então saídas possíveis, quase nunca compreendidas.
A busca pelo capital ao
mesmo tempo em que abre possibilidades únicas para o desenvolvimento, também produz
opressão e miséria. O sistema, embasado numa ideologia cuja função consiste em
justificar e encobrir as divisões da sociedade, não comporta uma literatura
voltada para valores humanizantes, por isso, a poesia se direciona, nas palavras
de Bosi, para as “formas estranhas” que “não constituem o ser da poesia, mas
apenas o seu modo historicamente possível de existir no interior do processo
capitalista”.
Os temas elevados,
outrora marcas da poesia, intercalam-se com versos indigestos denunciando a
banalização do homem e as contradições da ideologia dominante. O poema Canção de Berço de Carlos Drummond
exemplifica a afirmação supracitada, em versos pessimistas o eu lírico declara
a não validade do amor num mundo em que a relevância das coisas é medida pelo lucro
que podem gerar.
O amor não tem
importância.
No tempo de você, criança,
uma simples gota de óleo
povoará o mundo por inoculação,
e o espasmo
(longo demais para ser feliz)
não mais dissolverá as nossas carnes.
-------------------------------------------------------------------------------
Também a vida é sem importância.
Os homens não me repetem
nem me prolongo até eles.
A vida é tênue, tênue.
---------------------------------------------------------------------------------
Os beijos não são importantes.
No teu tempo nem haverá beijos.
Os lábios serão metálicos,
civil, e mais nada, será o amor
dos indivíduos perdidos na massa
e só uma estrela
guardará o reflexo
do mundo esvaído
(aliás sem importância).
No tempo de você, criança,
uma simples gota de óleo
povoará o mundo por inoculação,
e o espasmo
(longo demais para ser feliz)
não mais dissolverá as nossas carnes.
-------------------------------------------------------------------------------
Também a vida é sem importância.
Os homens não me repetem
nem me prolongo até eles.
A vida é tênue, tênue.
---------------------------------------------------------------------------------
Os beijos não são importantes.
No teu tempo nem haverá beijos.
Os lábios serão metálicos,
civil, e mais nada, será o amor
dos indivíduos perdidos na massa
e só uma estrela
guardará o reflexo
do mundo esvaído
(aliás sem importância).
Os
hábitos mecanizados, práticos e egoístas do mundo estão presentes no poema. Observamos
nele o que Bosi chama de ausência da “vontade mitopoética”, o “poder originário
de nomear as coisas”. Os versos de Drummond demonstram a vergonhosa realidade contemporânea
em que “as almas e o objetos foram assumidos e guiados, no agir cotidiano,
pelos mecanismos do interesse, da produtividade; e o seu valor foi-se medindo
quase automaticamente pela posição que ocupam na hierarquia de classe ou de status”.
Carlos Drummond de Andrade
A
ideologia dominante, interessada na manutenção das divisões sociais, como
império quase onipresente, adquire nos dias de hoje a função de dar nome e
sentido as coisas. Sua escala de valores não preserva a integridade humana e a
beleza do mundo natural, antes, como afirma Bosi, “transformou o corpo e a
mente de cada indivíduo em mão-de-obra sem nome nem rosto, que pode ser substituída
a qualquer hora. Das fontes da natureza fez matéria prima; do fruto do trabalho
fez mercadoria a ser trocada e consumida”.
A
realidade, é claro, é dita de outras formas. A atual nomeadora das coisas, com seus
padrões éticos duvidosos, “mascara-a, desfocando a visão para certos ângulos
mediante termos abstratos, clichês, slogans,
ideias recebidas de outros contextos e legitimadas pelas forças em presença”.
Cabe à poesia, fiel aos princípios humanizadores que fundamentam a sua
existência, entoar o “canto oposto à língua da tribo”, e despertar em ouvidos
mais atentos o notar das contradições do sistema dominante.
Além
do canto oposto, existem outras maneiras de se enfrentar o exílio babilônico
mantendo os valores de Sião, a autodesarticulação como maneira de ser
representa um dos reflexos da poesia que não consegue integrar-se à sociedade.
O poema concretista Beba Coca Cola de
Décio Pignatari é exemplo desse tipo de resistência:
“Beba
Coca Cola”, um dos slogans mais
famosos do mundo, mascara uma realidade de domínio imperialista e com ele um sistema
organizado de opressão. Pignatari realiza o processo de desconstrução e
reconstrução do slogan finalizando o
poema com a palavra “cloaca”, vocábulo apropriado para designar os excrementos
de uma “teia crescente de domínio e ilusão” nomeada enganosamente como
progresso e desenvolvimento.
Engano
é uma das grandes marcas de qualquer Babilônia. Desfocando a realidade em
ângulos convincentes, o império capitalista consegue perpetuar o seu domínio
encontrando pouca resistência. Entretanto, como judeus que se negam a cantar
para os seus opressores, a poesia representa como já dito, o canto oposto da
tribo, uma alternativa de liberdade no ambiente sufocante do cativeiro. Mário
Quintana em um dos seus poemas trabalha com esse caráter salvador da poesia:
Emergência
Quem faz um poema abre uma janela
Respira, tu que estás em uma cela
Abafada, esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
- Para que possas profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado.
Proporcionadora
de liberdade, a poesia resgata o sujeito do cárcere das verdades fabricadas e
do senso comum. Representa uma das faces de resistência à ideologia contemporânea,
o fazer poético “contradiz o ser dos discursos correntes”, resiste prendendo-se
à memória de um passado mais humano em que “a comunhão com a natureza, com os
homens com Deus, a unidade vivente da pessoa e mundo, o estar com a totalidade”
eram os valores que moviam os sentimentos.
Mário Quintana
Enquanto
o retorno a Sião não se concretiza, a poesia continua desenvolvendo e
aperfeiçoando as suas formas de resistência. Cantando cânticos em terra
estranha ela representa o refúgio daqueles que não se dobram ao império da
modernidade, daqueles que, como ela, resistem “imaginando uma nova ordem no
horizonte da utopia”.