quinta-feira, 13 de outubro de 2011

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, DÉCIO PIGNATARI E MÁRIO QUINTANA


Junto aos rios mirrados da Babilônia, judeus exilados certa vez choraram ao se lembrarem de Sião, a sua “maior alegria”, os opressores pediam que cantassem uma música, mas como entoariam cânticos estando em terra estranha?(Sl 147). A resistência nostálgica dos judeus em se dobrar ante os ditames do império babilônico nos tempos bíblicos tem sido usada por muitos intelectuais para ilustrar a resistência da poesia em nossos dias. Exilada em uma terra idólatra e soberba, tal qual a Babilônia, onde nomear as coisas já não faz parte de sua alçada e onde a contemplação espiritual e a sensibilidade são substituídas pelo utilitarismo e a rotina, características intrínsecas da modernidade, a poesia resiste utilizando-se de formas estranhas, opondo-se como pode à opressão da ideologia dominante.

No texto-manifesto Poesia Resistência, Alfredo Bosi, descreve os caminhos dessa resistência. Cativeiro, inimigo e opressão são palavras recorrentes na obra e atestam a visão da poesia encarcerada, buscando alternativas para sobreviver em um ambiente hostil. Muito se tem discutido acerca da utilidade e da sobrevivência da poesia na modernidade e o certo é que a poesia não consegue e não quer integrar-se ao discurso atual da sociedade, procurando então saídas possíveis, quase nunca compreendidas.

A busca pelo capital ao mesmo tempo em que abre possibilidades únicas para o desenvolvimento, também produz opressão e miséria. O sistema, embasado numa ideologia cuja função consiste em justificar e encobrir as divisões da sociedade, não comporta uma literatura voltada para valores humanizantes, por isso, a poesia se direciona, nas palavras de Bosi, para as “formas estranhas” que “não constituem o ser da poesia, mas apenas o seu modo historicamente possível de existir no interior do processo capitalista”.

Os temas elevados, outrora marcas da poesia, intercalam-se com versos indigestos denunciando a banalização do homem e as contradições da ideologia dominante. O poema Canção de Berço de Carlos Drummond exemplifica a afirmação supracitada, em versos pessimistas o eu lírico declara a não validade do amor num mundo em que a relevância das coisas é medida pelo lucro que podem gerar.



O amor não tem importância.
No tempo de você, criança,
uma simples gota de óleo
povoará o mundo por inoculação,
e o espasmo
 (longo demais para ser feliz)
não mais dissolverá as nossas carnes.
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Também a vida é sem importância.
Os homens não me repetem
nem me prolongo até eles.
A vida é tênue, tênue.
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Os beijos não são importantes.
No teu tempo nem haverá beijos.
Os lábios serão metálicos,
civil, e mais nada, será o amor
dos indivíduos perdidos na massa
e só uma estrela
guardará o reflexo
do mundo esvaído
 (aliás sem importância).



Os hábitos mecanizados, práticos e egoístas do mundo estão presentes no poema. Observamos nele o que Bosi chama de ausência da “vontade mitopoética”, o “poder originário de nomear as coisas”. Os versos de Drummond demonstram a vergonhosa realidade contemporânea em que “as almas e o objetos foram assumidos e guiados, no agir cotidiano, pelos mecanismos do interesse, da produtividade; e o seu valor foi-se medindo quase automaticamente pela posição que ocupam na hierarquia de classe ou de status”.

Carlos Drummond de Andrade

A ideologia dominante, interessada na manutenção das divisões sociais, como império quase onipresente, adquire nos dias de hoje a função de dar nome e sentido as coisas. Sua escala de valores não preserva a integridade humana e a beleza do mundo natural, antes, como afirma Bosi, “transformou o corpo e a mente de cada indivíduo em mão-de-obra sem nome nem rosto, que pode ser substituída a qualquer hora. Das fontes da natureza fez matéria prima; do fruto do trabalho fez mercadoria a ser trocada e consumida”.

A realidade, é claro, é dita de outras formas. A atual nomeadora das coisas, com seus padrões éticos duvidosos, “mascara-a, desfocando a visão para certos ângulos mediante termos abstratos, clichês, slogans, ideias recebidas de outros contextos e legitimadas pelas forças em presença”. Cabe à poesia, fiel aos princípios humanizadores que fundamentam a sua existência, entoar o “canto oposto à língua da tribo”, e despertar em ouvidos mais atentos o notar das contradições do sistema dominante.

Além do canto oposto, existem outras maneiras de se enfrentar o exílio babilônico mantendo os valores de Sião, a autodesarticulação como maneira de ser representa um dos reflexos da poesia que não consegue integrar-se à sociedade. O poema concretista Beba Coca Cola de Décio Pignatari é exemplo desse tipo de resistência:



“Beba Coca Cola”, um dos slogans mais famosos do mundo, mascara uma realidade de domínio imperialista e com ele um sistema organizado de opressão. Pignatari realiza o processo de desconstrução e reconstrução do slogan finalizando o poema com a palavra “cloaca”, vocábulo apropriado para designar os excrementos de uma “teia crescente de domínio e ilusão” nomeada enganosamente como progresso e desenvolvimento.

Engano é uma das grandes marcas de qualquer Babilônia. Desfocando a realidade em ângulos convincentes, o império capitalista consegue perpetuar o seu domínio encontrando pouca resistência. Entretanto, como judeus que se negam a cantar para os seus opressores, a poesia representa como já dito, o canto oposto da tribo, uma alternativa de liberdade no ambiente sufocante do cativeiro. Mário Quintana em um dos seus poemas trabalha com esse caráter salvador da poesia:

Emergência

Quem faz um poema abre uma janela

Respira, tu que estás em uma cela

Abafada, esse ar que entra por ela.

Por isso é que os poemas têm ritmo

- Para que possas profundamente respirar.

Quem faz um poema salva um afogado.


Proporcionadora de liberdade, a poesia resgata o sujeito do cárcere das verdades fabricadas e do senso comum. Representa uma das faces de resistência à ideologia contemporânea, o fazer poético “contradiz o ser dos discursos correntes”, resiste prendendo-se à memória de um passado mais humano em que “a comunhão com a natureza, com os homens com Deus, a unidade vivente da pessoa e mundo, o estar com a totalidade” eram os valores que moviam os sentimentos.

                                                 Mário Quintana

           Enquanto o retorno a Sião não se concretiza, a poesia continua desenvolvendo e aperfeiçoando as suas formas de resistência. Cantando cânticos em terra estranha ela representa o refúgio daqueles que não se dobram ao império da modernidade, daqueles que, como ela, resistem “imaginando uma nova ordem no horizonte da utopia”.


quinta-feira, 11 de agosto de 2011

EÇA DE QUEIRÓS


Breve análise do conto “O Tesouro”, de Eça de Queirós

           “O poeta é a antena da raça”, um dia  escreveu Ezra Pound, em outras palavras, ele capta no ar conceitos, visões e fundamentos que engendram o movimentar humano. Não é preciso ser poeta para observar certas realidades visíveis e palpáveis como o fascínio e o serviço que o homem dedica aos preciosos metais entalhados. O cidadão comum, na lógica sabedoria popular, com facilidade captaria o fato de que “a boca do ambicioso só se fecha com a terra da sepultura”, e que verdadeiramente quando se tem dinheiro é melhor preparar-se para o vendaval. Mas até que ponto o aguçado senso de realidade dos populares é verdadeiro? O fato é que, a maioria de nós, deseja ao menos um vento leve para nos aquietar. O poder do “vil metal” sobre a raça humana já foi tema de poemas, romances, epopéias e textos sagrados. Hábeis observadores do mundo já discorreram de diversas maneiras sobre o assunto. No conto “O Tesouro”, Eça de Queirós mostra num espelho caricatural as mazelas de homens corrompidos que, fortemente dominados pela ganância, rompem os frágeis laços fraternais que os unem. Nesta breve análise procuraremos verificar no conto os principais símbolos que revelam a percepção do autor sobre a relação do homem com o dinheiro e as riquezas.

O ambiente é o reino das Astúrias no século XI. Ali viviam três irmãos, Rui, Ganes e Rostabal. Fidalgos empobrecidos moravam nos “Paços de Medranhos” miseravelmente. Em certa manhã de domingo, enquanto andavam pelo bosque encontraram um tesouro, um velho cofre de ferro cheio de ouro. A arca era aberta por três chaves que também estavam ali. A alegria dos fidalgos foi imensa, logo construíram planos magníficos para  usufruir daquela riqueza. Entretanto, também se sentiram intimidados com a presença dos seus irmãos. O medo de perder o tesouro gerava em cada um uma enorme desconfiança. Rui, que era o mais “avisado”, decidiu: o tesouro seria dos três, repartido igualmente. O perspicaz irmão tratou também de convencer Guanes a ir até a cidade e prover-se de comida. Guanes parte então cantarolando em sua égua. Rui continua utilizando seu poder persuasivo, dessa vez a intenção é convencer Rostobal a matar Guarnes assim que este regressasse, essa era a maneira de dividir o tesouro em apenas duas partes. De grande porte, mas pouco entendimento, Rostobal aceita a ideia de pronto e ataca com sua espada o irmão na ilharga. Realizado o fratricídio, Rostobal  foi lavar-se no riacho, ali é atacado por Rui com uma punhalada nas costas. O irmão entendido comemora seu bom trabalho e prepara-se para tomar posse do tesouro, que agora seria totalmente seu. Antes,  como estava faminto,  lembra-se da comida que o “bom mordomo” Guarnes havia trazido, bebe também uma garrafa de vinho. Quando se preparava para guardar o tesouro no alforje, sente uma grande queimação no em todo corpo, debate-se feito um animal na grama e descobre que também havia sido traído, Guanes envenenara as duas garrafas que trouxera. Rui morre e o tesouro permanece sem dono no meio do bosque.

É possível, mesmo em uma leitura não muito atenta, identificar algumas características naturalistas da obra. Crítico mordaz da sociedade, Eça usa um conto ambientado na Idade Média para retratar os costumes da sociedade que lhe era contemporânea e próxima. Debrucemos-nos, primeiramente, sobre a questão simbológica do número três, bastante presente no conto (“os três irmãos...”, “três chaves...”, “três fechaduras...”, “três senhores...”, “três alforges...”, “três botelhas de vinho...”, etc.). O número três provavelmente possua o significado de totalidade, de plenitude. O Três também é, segundo alguns estudiosos, o número da família; pai, mãe e filhos. Mas o que se nota no conto é a ausência da família progenitora, existem apenas três irmãos, sem qualquer referência aos pais. É possível, a partir desse fato, subtender que nesse lar existe a ausência de referências. Rui, Guanes e Rostobal, nunca poderiam demonstrar sentimentos de compaixão, porque não receberam. Agiam como os “mais bravis lobos”, o ambiente determina o comportamento dos três. Não se poderia receber amor de quem só havia experimentado miséria. Os três irmãos, numa análise determinista, eram joguetes das condições do meio em que foram criados, que condicionaram suas atitudes e sentimentos.

Outro fator naturalista no conto é a pintura do homem como ser animalesco. Já dissemos aqui que os três irmãos eram lobos vorazes, dormiam na estrebaria junto com as mulas. Quando encontram o tesouro, seus olhos flamejam como olhos de cães famintos disputando por um osso. Rostabal “rosna” enquanto planeja a morte de seu irmão. Entretanto, a cena que retrata da melhor maneira o parentesco do homem com o animal é descrita já no final do conto, quando Rui agoniza ao beber o vinho envenenado: “Recuou, caiu para cima da relva, que arrancava aos punhados, e que mordia, mordendo os dedos, para lhe sugar a frescura. Ainda se ergueu, com uma baba densa a escorrer-lhe nas barbas: e de repente, esbugalhando pavorosamente os olhos, berrou, como se compreendesse enfim a traição...”.

Existe, porém, um paradoxo singular nessa aproximação do homem com o animal. Durante a narrativa, um dos artifícios utilizados por Rui na tentativa de convencer Rostabal a matar o irmão, é dizer que Guanes está doente e que, portanto, o dinheiro não lhe servirá por muito tempo. Em certo momento da prédica ele comenta “Tu não o ouves, de noite, como tosse? Ao redor da palha em que dorme, todo o chão está negro do sangue que escarra!”. Os dois irmãos são incapazes de se apiedar do companheiro doente, não lhes importava se tossia ou sangrava a noite, seu foco era o ouro a mais que poderiam. Depois  do assassinato, Rui tenta erguer a mula de Guedes que havia caído junto com seu dono, mas ela resiste pois “não queria deixar o seu amo assim estirado, abandonado, ao comprido das sebes.” Mesmo a débil mula sente compaixão por seu dono, apieda-se do corpo estirado.

Os animais e a natureza exercem um papel interessante no conto, são testemunhas da decadência humana frente à ganância e atuam como anunciantes da tragédia que fatalmente viria. Logo após encontrarem os torrões de ouro, os irmãos riem prazerosamente “num riso de tão larga rajada que as folhas tenras de olmos, em roda, tremiam...”, elas não balançavam ou movimentavam-se, elas tremiam como seres temerosos dos acontecimentos futuros. Frentes às ideias homicidas e as largas passadas de Rui e Rostabal “as ervilhas silvavam”, quando preparavam a emboscada, “um vento leve arrepiou na encosta as folhas dos álamos” e ainda “um bando de corvos passou sobre eles, grasnando”. Os corvos reaparecem grasnando quando Rui está prestes a beber o vinho envenenado e no último parágrafo, dois deles pousam sobre o corpo de Guanes.

A tragédia é anunciada também através de outros fatores que, se fossem a tempo percebidos, evitariam mortes. A letra que Guanes cantarola enquanto cavalga é sugestiva:

Olé! Olé!

Sale la cruz de la inglésia,

Vestida de negro luto...

O caráter fúnebre da canção já previa a atitude de Guanes envenenando a bebida dos irmãos. As garrafas de vinho são outro prenúncio da tragédia final. O inteligente Rui reparou nas duas garrafas trazidas por Guanes, quando este deveria ter trazido três, mas na euforia momentânea Rui não se importou, esqueceu-se que o irmão, assim como ele, estava pré-determinado a ser traiçoeiro e sem amor fraterno.

Finalmente, é necessário que se comente sobre o precioso símbolo que o tesouro representa no conto. Contextualizemos então a situação dos três rapazes; deseperançosos da vida e de tudo, procuram rastros de alguma caça ou algum tortulho que pudesse saciar a fome. São apenas animaizinhos, crias sem cuidado que sobrevivem sem qualquer esperança no futuro. Mas os três, juntos, encontram o tesouro, a possibilidade de algo melhor, de uma redenção. Eufóricos cogitam uma nova vida sem as misérias habituais. Quem dera continuassem como lobos! Porém, a natureza humana chama mais alto, a necessidade de ter, de suplantar o próximo conclama os corpos animalescos a agiram como humanos, a matarem-se uns aos outros por pura ganância.

Centenas de observadores no mundo captam opiniões ímpares sobre o conturbado relacionamento do homem com as riquezas. Doutos, indoutos, poetas, populares e presidentes conceituam, cada um à sua maneira, o que  consideram sobre os bens materiais. Para muitos, eles são um meio de alcançar, ou complementar, a felicidade. Outros enxergam a riqueza e o apego a ela como “raiz de todos os males”. Eça, artista importante no cenário português, “antena da raça”, capaz de captar mais além, através do conto “O tesouro” deixa sua contribuição: a ganância do homem é mais forte do que a frágil, talvez inexistente, unidade e fraternidade humana.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

quinta-feira, 10 de março de 2011

JOSÉ SARAMAGO

Comentários sobre a obra O homem duplicado de José Saramago

Tertuliano Afonso Máximo, nome e sobrenome, filho de um pai e de uma mãe, identidade única, resultado de uma junção cromossômica exclusiva. Em quarenta anos o primeiro Tertuliano da pequena cidade onde nascera, “berço dos Máximos maternos e dos Afonsos paternos”, Tertuliano é o nome que escolhido por Saramago para o protagonista do seu décimo segundo romance, nome que, para seu usuário, “pesava como uma lousa”, mas que é bastante significativo numa trama que visa mais do que narrar as desventuras de homens idênticos.
Em O Home Duplicado José Saramago, substitui as temáticas sociais contemporâneas presentes em Ensaio sobre a cegueira, A Caverna e Ensaio sobre a Lucidez, para a análise psicológica do homem pós-moderno com sua inquietações paradoxos e a preocupante perca de identidade,  para esse intento utiliza-se de um tradicional tema da literatura mundial, o duplo.
Stevenson, Dostoievsky e Shakespeare,  são alguns dos escritores que em suas obras tratam a duplicidade em diferentes perspectivas. Robert Louis Stevenson em O médico e o monstro cria talvez o mais famoso duplo, Dr. Jekyll o pacato cidadão inglês que se transforma à noite no maléfico Mr. Hyde. Se atentarmos para as características do romance de Stevenson veremos que possui algumas semelhanças com o O homen duplicado. Na verdade, como romance polifônico, os pontos de contato entre O homem duplicado e outras obras que giram em torno do mesmo assunto são muitas, e necessitam de um estudo mais aprofundado. Em geral as duplicidades em romance costumam ser tratadas com em Stevenson: o bem contra o mal. Para o leitor vítima, definido por Eco como aquele preso ao “o que” da obra, a trama poderia representar o tradicional contexto binário, mas o crítico leitor, treinado na visão saramaguiana enxerga na trama do medíocre professor bem mais do que isso.
O protagonista é Tertuliano, bem intencionado cidadão, professor de história, que, necessitando de distrações, aceita a recomendação de um colega de assistir uma comédia despretensiosa, Quem porfia mata a caça. No filme um personagem secundário  surpreende Tertuliano, o ator é idêntico a ele, não apenas parecido, o homem é sua cópia, apresentando os mesmos trejeitos e aparência absolutamente igual. A partir dai, o professor resolve descobrir a identidade do autor, descobre que seu nome é Daniel Santa-Clara, pseudônimo de António Claro, que mora na mesma cidade. A muito custo, consegue um encontro com o outro. Frente a frente descobrem mais similaridades, era como se olhassem nos espelho.
Antônio Claro, eles descobrem, nascera primeiro,  tinha consequentemente proeminência, uma aparente diferença então se revela. António chantageia Tertuliano e consegue ir em seu lugar para uma noite romântica com a  noiva do professor. Colocando  sua integridade moral em segundo plano, Tertuliano decide vingativamente passar- se por Antônio e também aproveitar um noite de amor, com Helena mulher do ator.
A mera visão dicotômica não encontra vez em o homem duplicado, Daniel Santa-Cruz  não representa a face má , é a própria face de Tertuliano. A igualdade não se revela apenas na voz e na aparência, está presente também no igual caráter. Bem verdade que em Tertuliano a essência de sua natureza é mascarada, vindo a se revelar completamente apenas no desfecho da obra.
No requisito de integridade moral, a primeira impressão é que Tertuliano está acima de sua cópia. É honesto, professor competente, ciente das suas “invioláveis obrigações”, Daniel Santa- Cruz, por sua vez, é lascivo e depravado. Sem nenhum escrúpulo, ameaça  Tertuliano e rouba-lhe a noite de amor com Maria da Paz. O professor de História, influenciado pela tradição mesopotâmica que andara lendo, recorre à lei de Talião, age de igual maneira para estar com Helena: “se tu vais dormir com a minha mulher, eu vou dormir com a tua, isto é olho por olho, dente por dente”. O devasso autor secundário mostra o seu caráter infiel em desejar outra mulher que não a  sua, a infidelidade conjugal também está presente, embora por outros motivos, no honesto professor, que trai sua noiva por mera vingança. Helena e Maria da Paz são vítimas inocentes da trama, transforma-se em joguetes para satisfazer desejos libidinosos e vingativos geradores de tragédia.
Antônio e Maria da Paz morrem num acidente de trânsito, o que noticiam, entretanto, é a morte de Tertuliano, o professor de História. A face má, sob ponto de vista de um leitor inocente, poderia ter acabado aí, Tertuliano tinha a chance de recuperar sua identidade, confessar o erro e consertar as coisas, entretanto, esse não seria um desfecho saramaguiano.
Interessado m expor as discórdias humanas, o autor discorre na obra:  “nós, seres humanos, embora continuemos a ser, uns mais, outros menos, tão animais como antes, temos alguns sentimentos bons, às vezes até um resto ou um princípio de respeito por nós mesmos”. Essa digressão aproxima o autor a Stevenson quando este escreve em O médico e o monstro: "Minha análise da alma, da psique humana, leva-me a crer que o ser humano não é verdadeiramente um, mas verdadeiramente dois. Um deles esforça-se para alcançar tudo que é nobre na vida. É o que chamamos de lado bom. O outro, quer expressar impulsos que prendam-no a obscuras relações animais com a terra. Esse é o que podemos chamar de mal...”. A ideia do escritor escocês corrobora a visão de Saramago a respeito do ser humano, que é a junção do que há de positivo e também do que existe de negativo, o bem e o mal juntos.
Tertuliano Afonso comportara-se de modo condenável, sim, mas sob efeito dos “sentimentos bons”, decorridos da perda trágica de sua noiva, decide agir como homem, revelar o segredo, confessar a vergonhosa atitude e aprender a conviver com suas consequências. Seu lado bom não perdura, assume efetivamente a identidade do ator, e, quando descobre que existia outra cópia de si, decide agir como um animal zeloso por sua sobrevivência, marca um encontro com o idêntico,“depois foi ao quarto, abriu a gaveta onde estava a pistola. Introduziu o carregador na coronha e transferiu um cartucho para a câmara. Mudou de roupa, camisa lavada, gravata, calças, casaco, os sapatos melhores. Entalou a pistola no cinto e saiu.”
Assim termina o livro, o pacato professor de história descobre através de sua cópia, a original essência do seu caráter, como bem discorre o narrador, o significado atual palavra “idêntico” corresponde ao étimo latino talis donde veio o nome da lei de Talião e  “se idêntico forma os delitos cometidos [olho por olho, dente por dente], idênticos foram os que o cometeram”.
O nome Tertuliano também explica muita coisa nessa obra, Tertuliano foi um autor prolífico das primeiras fases do cristianismo, mesmo tendo dedicado anos da sua vida combatendo os heréticos que insistiam em desobedecer as regras cristãs, o teólogo morreu fora da Igreja, com um pequena grupo de partidários, para os católicos foi o mau uso do seu gênio associada ao orgulho, concessões da carne que o levaram a morrer como herege. O nosso Tertuliano, professor de história, pregando e vivendo uma vida honesta e pacata, ao decobrir sua essência dúbia, dá margem para que suas concupiscências se aflorem, convertendo-o  no final do livro a tudo que não queria ser.
Mesmo na multiplicidade , existe entre as pessoas uma forte identificação  , a despeito das junções cromossômicas exclusivas que circulam na terra, a essência do homem é idêntica, a dualidade. O caráter paradoxal, é o que nos constitui como seres humanos. Descobrir o âmago de nossa natureza pode levar a consequências trágicas, como ocorre em O homem duplicado. Estar ciente da essência, por outro lado, pode ajudar a controlar nossos impulsos e diminuir a pretensão de bondade e sufuciência, nos dando razões para buscar coisas mais firmes que nos sustentem e humildade para entender as mazelas alheias, já que somos também cheios delas.
                                                                           Zípora Dias 

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

GUIMARÃES ROSA

Um tanto tolinha

No livro Primeiras Estórias, um conto singelo é representante da aura religiosa presente nos escritos de Guimarães Rosa. Em A Menina de Lá, olhando o local com vistas no universal, o autor consegue captar a fé, a grande mantenedora de esperanças,  que faz a lida cotidiana do sertanejo pobre se tornar mais suportável.
Embora também retrate na obra a religiosidade quase medieval, fundamentada no medo, em A Menina de Lá, Rosa nos revela um exemplo doce de fé, aquela simples e viva, sem tradições ou dogmas. Nininha, sem terço na mão, é o Temor de Deus na prática. “Nascera muito miúda, cabeçudota, e com olhos enormes”, ninguém entendia as coisas que falava ou seus vácuos constantes, “talvez seja um tanto tolinha”, pensavam. Uma vida um tanto tolinha que valorizava coisas simples “levianas e descuidadosas”. Não compreendiam esse jeito de viver, faziam-lhe bruxinhas, compravam-lhe brinquedos, ela recusava, sua alegria era expiar o mundo sentada num banquinho de madeira. Dizia também verdades inconvenientes, o robusto pai era uma criança que gostava de pedir, a mãe não escondia nas formas de mulher a duradoura inexperiência de menina.


Nininha, como bem lembra o diminutivo, era pequena, pequenininha no tamanho e, talvez, também no valor que as pessoas lhe davam. Então, o mundo diminuto se agiganta quando seu dom especial é descoberto. Um espanto para os adultos, “sentiam um medo extraordinário da coisa”, mas para ela não fazia diferença, a menina tinha a sabedoria das pessoas de lá,  entendia sem explicações o que é inexplicável. 
Tolinha como era, entendia, por exemplo, porque as abelhas voavam para as nuvens e porque existia lá uma mesa de doces enorme para  crianças iguais a ela. Disse certa vez, “eu quero ir para lá”, tinha saudades daquele lugar e não demorou  muito para estar ali.


O “lá” de Guimarães, do sertanejo e de Nininha, mito para alguns, é o lugar melhor na esperança de muitos. No conto, opondo-se ao que comumente se apregoa, o céu é reservado para pessoas “um tanto tolinhas”, aquelas desprezadas pela maioria dos cristãos, mas descrita no livro sagrado deles como as importantes “coisas loucas” desse mundo que confundem as sábias, as “coisas fracas” que envergonham as fortes, as “coisinhas insignificantes” que aniquilam aquelas que são alguma coisa. O céu, grande objetivo da fé, do sertanejo e do citadino, é o lugar da menina que não ia à missa e nem rezava terços, mas que, na simplicidade de sua fé verdadeira, alcança a glória.

                                                                                 Zípora Dias

sábado, 11 de dezembro de 2010

CORA CORALINA


Mestres, borboletas e casulos

Figura proeminente nas memórias escolares é a do mestre. Carrancudo, gentil, dedicado, sábio, injusto, paciente, arrogante, são variáveis os conceitos que a figura encerra. Para a poetisa Cora Carolina, a mestra Silvina, era o ser resplandecente, a luz escondida na pobre e velha escola. As reminiscências de muitos trazem também com ternura imagens de professores competentes, empenhados em desencantar pequenos casulos.

Cora Coralina

Para o bem ou para o mal, professores de todos os tipos e ideologias ficaram marcados em nossa memória e fazem parte da nossa constituição como indivíduo. Tive professores que se assemelhavam a colecionadores de borboletas. Seres dotados de coloração única, de características singulares “borboleteavam” em suas aulas, mas, como ávidos colecionadores esses mestres logo nos espetavam em seus quadros, então nos etiquetavam e nos categorizavam de acordo com os velhos padrões entomológicos. Nosso mundo que era livre, repleto de muitas possibilidades, ficava restrito àquelas terríveis caixas de colecionador. Havia, entretanto, os bons professores, consideravam as particularidades de cada aluno, valorizavam os nossos talentos e nos ajudavam a descobrir outros novos. Se por acaso existisse entre nós, e com certeza existia, casulos tidos como feios e informes, esses mestres, com paciência e perseverança, abriam os “entendimento oclusos”. Borboletas únicas, para surpresa de todos, surgiam enriquecendo o borboletário.
A  sala de aula repleta de alunos motivados, interessados e livres é a minha melhor recordação dos tempos de escola. Devo isso aos professores que, como mestra Silvina, cheios de motivação, enxergavam grandes possibilidades em casulos inexpressivos.

Zipporah Dias

CLARICE LISPECTOR


As regiões abissais na obra de Clarice
O “mundo não esta à tona”, escreve Clarice, “está oculto em suas raízes submersas em profundidade do mar”, completa. Os escritores e poetas sabem dessa verdade, é trabalho dos bons escritores “desocultar” o mundo e revelá-lo. Para descobrir verdades, Clarice não precisa mergulhar nas profundezas do conhecimento. Não é necessário recorrer aos grandes mestres e pensadores, os melhores escritores sabem que grande parte das respostas está nas regiões abissais do interior humano.
A narrativa interiorizada é característica da escritora, sua intuição alcança esse espaço de liberdade para entender as coisas. Uma mulher que se sente mãe de Deus, uma menina persistente em busca da felicidade, são caminhos para revelar o secreto dela mesma. Momentos centrados no interior de suas personagens desencadeiam de forma repentina revelações sobre a vida. Esse momento revelador, que abre a consciência para a compreensão, é conhecido como epifania, outra marca da obra de Clarice. Em Perdoando Deus ela surge quando a narradora se depara com um asqueroso roedor: e foi quando quase pisei num enorme rato morto. É o enorme rato que “ilumina” a personagem fazendo com que ela pondere sobre fatos que dificilmente atentaria se não houvesse no caminho um rato morto. Deus, o mundo, e ela mesma são compreendidos de forma melhor a partir daquele evento. Já no conto Felicidade Clandestina a “revelação” ocorre no final, a partir da posse do livro a personagem entende certo aspecto de sua existência: A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia (...).

Clarice Lispector
 

Descrever o interior humano exige uma narrativa diferente. A mente não pensa de forma linear, é justo que as narrativas de Clarice não obedeçam  regras de espaço e  tempo. Lembranças, presente e futuro se misturam em sua narrativa de forma que, às vezes, torna-se difícil distinguir quem fala ou de onde fala. Nas duas obras citadas, o fluxo de consciência é notório: ...mas vou contar – não conte, só por carinho não conte, (...)-mas vou contar sim..., o trecho é um exemplo de quebra no monólogo interior da personagem de Perdoando Deus. O conto Felicidade Clandestina também oferece, embora de uma forma menos acentuada, exemplos desse procedimento narrativo: ...guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas...
O interior humano é, dessa forma, sondado pela escritora. Para muitos, sua maneira de escrever é complexa. Na verdade, como certa vez ela disse, sua escrita é simples, as pessoa é que recebem de maneira complicada. A alma é profunda não no sentido de conter verdades extremamente complexas, mas por ser de difícil acesso. São poucas as pessoas que se aventuram na atividade, às vezes perigosa, de investigar o interior. Clarice Lispector é uma delas, dentro de uma literatura amadurecida usufrui da liberdade de expressar os sentimentos e a intuição de quem aprendeu a perscrutar os meandros da alma humana.