quinta-feira, 10 de março de 2011

JOSÉ SARAMAGO

Comentários sobre a obra O homem duplicado de José Saramago

Tertuliano Afonso Máximo, nome e sobrenome, filho de um pai e de uma mãe, identidade única, resultado de uma junção cromossômica exclusiva. Em quarenta anos o primeiro Tertuliano da pequena cidade onde nascera, “berço dos Máximos maternos e dos Afonsos paternos”, Tertuliano é o nome que escolhido por Saramago para o protagonista do seu décimo segundo romance, nome que, para seu usuário, “pesava como uma lousa”, mas que é bastante significativo numa trama que visa mais do que narrar as desventuras de homens idênticos.
Em O Home Duplicado José Saramago, substitui as temáticas sociais contemporâneas presentes em Ensaio sobre a cegueira, A Caverna e Ensaio sobre a Lucidez, para a análise psicológica do homem pós-moderno com sua inquietações paradoxos e a preocupante perca de identidade,  para esse intento utiliza-se de um tradicional tema da literatura mundial, o duplo.
Stevenson, Dostoievsky e Shakespeare,  são alguns dos escritores que em suas obras tratam a duplicidade em diferentes perspectivas. Robert Louis Stevenson em O médico e o monstro cria talvez o mais famoso duplo, Dr. Jekyll o pacato cidadão inglês que se transforma à noite no maléfico Mr. Hyde. Se atentarmos para as características do romance de Stevenson veremos que possui algumas semelhanças com o O homen duplicado. Na verdade, como romance polifônico, os pontos de contato entre O homem duplicado e outras obras que giram em torno do mesmo assunto são muitas, e necessitam de um estudo mais aprofundado. Em geral as duplicidades em romance costumam ser tratadas com em Stevenson: o bem contra o mal. Para o leitor vítima, definido por Eco como aquele preso ao “o que” da obra, a trama poderia representar o tradicional contexto binário, mas o crítico leitor, treinado na visão saramaguiana enxerga na trama do medíocre professor bem mais do que isso.
O protagonista é Tertuliano, bem intencionado cidadão, professor de história, que, necessitando de distrações, aceita a recomendação de um colega de assistir uma comédia despretensiosa, Quem porfia mata a caça. No filme um personagem secundário  surpreende Tertuliano, o ator é idêntico a ele, não apenas parecido, o homem é sua cópia, apresentando os mesmos trejeitos e aparência absolutamente igual. A partir dai, o professor resolve descobrir a identidade do autor, descobre que seu nome é Daniel Santa-Clara, pseudônimo de António Claro, que mora na mesma cidade. A muito custo, consegue um encontro com o outro. Frente a frente descobrem mais similaridades, era como se olhassem nos espelho.
Antônio Claro, eles descobrem, nascera primeiro,  tinha consequentemente proeminência, uma aparente diferença então se revela. António chantageia Tertuliano e consegue ir em seu lugar para uma noite romântica com a  noiva do professor. Colocando  sua integridade moral em segundo plano, Tertuliano decide vingativamente passar- se por Antônio e também aproveitar um noite de amor, com Helena mulher do ator.
A mera visão dicotômica não encontra vez em o homem duplicado, Daniel Santa-Cruz  não representa a face má , é a própria face de Tertuliano. A igualdade não se revela apenas na voz e na aparência, está presente também no igual caráter. Bem verdade que em Tertuliano a essência de sua natureza é mascarada, vindo a se revelar completamente apenas no desfecho da obra.
No requisito de integridade moral, a primeira impressão é que Tertuliano está acima de sua cópia. É honesto, professor competente, ciente das suas “invioláveis obrigações”, Daniel Santa- Cruz, por sua vez, é lascivo e depravado. Sem nenhum escrúpulo, ameaça  Tertuliano e rouba-lhe a noite de amor com Maria da Paz. O professor de História, influenciado pela tradição mesopotâmica que andara lendo, recorre à lei de Talião, age de igual maneira para estar com Helena: “se tu vais dormir com a minha mulher, eu vou dormir com a tua, isto é olho por olho, dente por dente”. O devasso autor secundário mostra o seu caráter infiel em desejar outra mulher que não a  sua, a infidelidade conjugal também está presente, embora por outros motivos, no honesto professor, que trai sua noiva por mera vingança. Helena e Maria da Paz são vítimas inocentes da trama, transforma-se em joguetes para satisfazer desejos libidinosos e vingativos geradores de tragédia.
Antônio e Maria da Paz morrem num acidente de trânsito, o que noticiam, entretanto, é a morte de Tertuliano, o professor de História. A face má, sob ponto de vista de um leitor inocente, poderia ter acabado aí, Tertuliano tinha a chance de recuperar sua identidade, confessar o erro e consertar as coisas, entretanto, esse não seria um desfecho saramaguiano.
Interessado m expor as discórdias humanas, o autor discorre na obra:  “nós, seres humanos, embora continuemos a ser, uns mais, outros menos, tão animais como antes, temos alguns sentimentos bons, às vezes até um resto ou um princípio de respeito por nós mesmos”. Essa digressão aproxima o autor a Stevenson quando este escreve em O médico e o monstro: "Minha análise da alma, da psique humana, leva-me a crer que o ser humano não é verdadeiramente um, mas verdadeiramente dois. Um deles esforça-se para alcançar tudo que é nobre na vida. É o que chamamos de lado bom. O outro, quer expressar impulsos que prendam-no a obscuras relações animais com a terra. Esse é o que podemos chamar de mal...”. A ideia do escritor escocês corrobora a visão de Saramago a respeito do ser humano, que é a junção do que há de positivo e também do que existe de negativo, o bem e o mal juntos.
Tertuliano Afonso comportara-se de modo condenável, sim, mas sob efeito dos “sentimentos bons”, decorridos da perda trágica de sua noiva, decide agir como homem, revelar o segredo, confessar a vergonhosa atitude e aprender a conviver com suas consequências. Seu lado bom não perdura, assume efetivamente a identidade do ator, e, quando descobre que existia outra cópia de si, decide agir como um animal zeloso por sua sobrevivência, marca um encontro com o idêntico,“depois foi ao quarto, abriu a gaveta onde estava a pistola. Introduziu o carregador na coronha e transferiu um cartucho para a câmara. Mudou de roupa, camisa lavada, gravata, calças, casaco, os sapatos melhores. Entalou a pistola no cinto e saiu.”
Assim termina o livro, o pacato professor de história descobre através de sua cópia, a original essência do seu caráter, como bem discorre o narrador, o significado atual palavra “idêntico” corresponde ao étimo latino talis donde veio o nome da lei de Talião e  “se idêntico forma os delitos cometidos [olho por olho, dente por dente], idênticos foram os que o cometeram”.
O nome Tertuliano também explica muita coisa nessa obra, Tertuliano foi um autor prolífico das primeiras fases do cristianismo, mesmo tendo dedicado anos da sua vida combatendo os heréticos que insistiam em desobedecer as regras cristãs, o teólogo morreu fora da Igreja, com um pequena grupo de partidários, para os católicos foi o mau uso do seu gênio associada ao orgulho, concessões da carne que o levaram a morrer como herege. O nosso Tertuliano, professor de história, pregando e vivendo uma vida honesta e pacata, ao decobrir sua essência dúbia, dá margem para que suas concupiscências se aflorem, convertendo-o  no final do livro a tudo que não queria ser.
Mesmo na multiplicidade , existe entre as pessoas uma forte identificação  , a despeito das junções cromossômicas exclusivas que circulam na terra, a essência do homem é idêntica, a dualidade. O caráter paradoxal, é o que nos constitui como seres humanos. Descobrir o âmago de nossa natureza pode levar a consequências trágicas, como ocorre em O homem duplicado. Estar ciente da essência, por outro lado, pode ajudar a controlar nossos impulsos e diminuir a pretensão de bondade e sufuciência, nos dando razões para buscar coisas mais firmes que nos sustentem e humildade para entender as mazelas alheias, já que somos também cheios delas.
                                                                           Zípora Dias