quinta-feira, 13 de outubro de 2011

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, DÉCIO PIGNATARI E MÁRIO QUINTANA


Junto aos rios mirrados da Babilônia, judeus exilados certa vez choraram ao se lembrarem de Sião, a sua “maior alegria”, os opressores pediam que cantassem uma música, mas como entoariam cânticos estando em terra estranha?(Sl 147). A resistência nostálgica dos judeus em se dobrar ante os ditames do império babilônico nos tempos bíblicos tem sido usada por muitos intelectuais para ilustrar a resistência da poesia em nossos dias. Exilada em uma terra idólatra e soberba, tal qual a Babilônia, onde nomear as coisas já não faz parte de sua alçada e onde a contemplação espiritual e a sensibilidade são substituídas pelo utilitarismo e a rotina, características intrínsecas da modernidade, a poesia resiste utilizando-se de formas estranhas, opondo-se como pode à opressão da ideologia dominante.

No texto-manifesto Poesia Resistência, Alfredo Bosi, descreve os caminhos dessa resistência. Cativeiro, inimigo e opressão são palavras recorrentes na obra e atestam a visão da poesia encarcerada, buscando alternativas para sobreviver em um ambiente hostil. Muito se tem discutido acerca da utilidade e da sobrevivência da poesia na modernidade e o certo é que a poesia não consegue e não quer integrar-se ao discurso atual da sociedade, procurando então saídas possíveis, quase nunca compreendidas.

A busca pelo capital ao mesmo tempo em que abre possibilidades únicas para o desenvolvimento, também produz opressão e miséria. O sistema, embasado numa ideologia cuja função consiste em justificar e encobrir as divisões da sociedade, não comporta uma literatura voltada para valores humanizantes, por isso, a poesia se direciona, nas palavras de Bosi, para as “formas estranhas” que “não constituem o ser da poesia, mas apenas o seu modo historicamente possível de existir no interior do processo capitalista”.

Os temas elevados, outrora marcas da poesia, intercalam-se com versos indigestos denunciando a banalização do homem e as contradições da ideologia dominante. O poema Canção de Berço de Carlos Drummond exemplifica a afirmação supracitada, em versos pessimistas o eu lírico declara a não validade do amor num mundo em que a relevância das coisas é medida pelo lucro que podem gerar.



O amor não tem importância.
No tempo de você, criança,
uma simples gota de óleo
povoará o mundo por inoculação,
e o espasmo
 (longo demais para ser feliz)
não mais dissolverá as nossas carnes.
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Também a vida é sem importância.
Os homens não me repetem
nem me prolongo até eles.
A vida é tênue, tênue.
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Os beijos não são importantes.
No teu tempo nem haverá beijos.
Os lábios serão metálicos,
civil, e mais nada, será o amor
dos indivíduos perdidos na massa
e só uma estrela
guardará o reflexo
do mundo esvaído
 (aliás sem importância).



Os hábitos mecanizados, práticos e egoístas do mundo estão presentes no poema. Observamos nele o que Bosi chama de ausência da “vontade mitopoética”, o “poder originário de nomear as coisas”. Os versos de Drummond demonstram a vergonhosa realidade contemporânea em que “as almas e o objetos foram assumidos e guiados, no agir cotidiano, pelos mecanismos do interesse, da produtividade; e o seu valor foi-se medindo quase automaticamente pela posição que ocupam na hierarquia de classe ou de status”.

Carlos Drummond de Andrade

A ideologia dominante, interessada na manutenção das divisões sociais, como império quase onipresente, adquire nos dias de hoje a função de dar nome e sentido as coisas. Sua escala de valores não preserva a integridade humana e a beleza do mundo natural, antes, como afirma Bosi, “transformou o corpo e a mente de cada indivíduo em mão-de-obra sem nome nem rosto, que pode ser substituída a qualquer hora. Das fontes da natureza fez matéria prima; do fruto do trabalho fez mercadoria a ser trocada e consumida”.

A realidade, é claro, é dita de outras formas. A atual nomeadora das coisas, com seus padrões éticos duvidosos, “mascara-a, desfocando a visão para certos ângulos mediante termos abstratos, clichês, slogans, ideias recebidas de outros contextos e legitimadas pelas forças em presença”. Cabe à poesia, fiel aos princípios humanizadores que fundamentam a sua existência, entoar o “canto oposto à língua da tribo”, e despertar em ouvidos mais atentos o notar das contradições do sistema dominante.

Além do canto oposto, existem outras maneiras de se enfrentar o exílio babilônico mantendo os valores de Sião, a autodesarticulação como maneira de ser representa um dos reflexos da poesia que não consegue integrar-se à sociedade. O poema concretista Beba Coca Cola de Décio Pignatari é exemplo desse tipo de resistência:



“Beba Coca Cola”, um dos slogans mais famosos do mundo, mascara uma realidade de domínio imperialista e com ele um sistema organizado de opressão. Pignatari realiza o processo de desconstrução e reconstrução do slogan finalizando o poema com a palavra “cloaca”, vocábulo apropriado para designar os excrementos de uma “teia crescente de domínio e ilusão” nomeada enganosamente como progresso e desenvolvimento.

Engano é uma das grandes marcas de qualquer Babilônia. Desfocando a realidade em ângulos convincentes, o império capitalista consegue perpetuar o seu domínio encontrando pouca resistência. Entretanto, como judeus que se negam a cantar para os seus opressores, a poesia representa como já dito, o canto oposto da tribo, uma alternativa de liberdade no ambiente sufocante do cativeiro. Mário Quintana em um dos seus poemas trabalha com esse caráter salvador da poesia:

Emergência

Quem faz um poema abre uma janela

Respira, tu que estás em uma cela

Abafada, esse ar que entra por ela.

Por isso é que os poemas têm ritmo

- Para que possas profundamente respirar.

Quem faz um poema salva um afogado.


Proporcionadora de liberdade, a poesia resgata o sujeito do cárcere das verdades fabricadas e do senso comum. Representa uma das faces de resistência à ideologia contemporânea, o fazer poético “contradiz o ser dos discursos correntes”, resiste prendendo-se à memória de um passado mais humano em que “a comunhão com a natureza, com os homens com Deus, a unidade vivente da pessoa e mundo, o estar com a totalidade” eram os valores que moviam os sentimentos.

                                                 Mário Quintana

           Enquanto o retorno a Sião não se concretiza, a poesia continua desenvolvendo e aperfeiçoando as suas formas de resistência. Cantando cânticos em terra estranha ela representa o refúgio daqueles que não se dobram ao império da modernidade, daqueles que, como ela, resistem “imaginando uma nova ordem no horizonte da utopia”.