quinta-feira, 11 de agosto de 2011

EÇA DE QUEIRÓS


Breve análise do conto “O Tesouro”, de Eça de Queirós

           “O poeta é a antena da raça”, um dia  escreveu Ezra Pound, em outras palavras, ele capta no ar conceitos, visões e fundamentos que engendram o movimentar humano. Não é preciso ser poeta para observar certas realidades visíveis e palpáveis como o fascínio e o serviço que o homem dedica aos preciosos metais entalhados. O cidadão comum, na lógica sabedoria popular, com facilidade captaria o fato de que “a boca do ambicioso só se fecha com a terra da sepultura”, e que verdadeiramente quando se tem dinheiro é melhor preparar-se para o vendaval. Mas até que ponto o aguçado senso de realidade dos populares é verdadeiro? O fato é que, a maioria de nós, deseja ao menos um vento leve para nos aquietar. O poder do “vil metal” sobre a raça humana já foi tema de poemas, romances, epopéias e textos sagrados. Hábeis observadores do mundo já discorreram de diversas maneiras sobre o assunto. No conto “O Tesouro”, Eça de Queirós mostra num espelho caricatural as mazelas de homens corrompidos que, fortemente dominados pela ganância, rompem os frágeis laços fraternais que os unem. Nesta breve análise procuraremos verificar no conto os principais símbolos que revelam a percepção do autor sobre a relação do homem com o dinheiro e as riquezas.

O ambiente é o reino das Astúrias no século XI. Ali viviam três irmãos, Rui, Ganes e Rostabal. Fidalgos empobrecidos moravam nos “Paços de Medranhos” miseravelmente. Em certa manhã de domingo, enquanto andavam pelo bosque encontraram um tesouro, um velho cofre de ferro cheio de ouro. A arca era aberta por três chaves que também estavam ali. A alegria dos fidalgos foi imensa, logo construíram planos magníficos para  usufruir daquela riqueza. Entretanto, também se sentiram intimidados com a presença dos seus irmãos. O medo de perder o tesouro gerava em cada um uma enorme desconfiança. Rui, que era o mais “avisado”, decidiu: o tesouro seria dos três, repartido igualmente. O perspicaz irmão tratou também de convencer Guanes a ir até a cidade e prover-se de comida. Guanes parte então cantarolando em sua égua. Rui continua utilizando seu poder persuasivo, dessa vez a intenção é convencer Rostobal a matar Guarnes assim que este regressasse, essa era a maneira de dividir o tesouro em apenas duas partes. De grande porte, mas pouco entendimento, Rostobal aceita a ideia de pronto e ataca com sua espada o irmão na ilharga. Realizado o fratricídio, Rostobal  foi lavar-se no riacho, ali é atacado por Rui com uma punhalada nas costas. O irmão entendido comemora seu bom trabalho e prepara-se para tomar posse do tesouro, que agora seria totalmente seu. Antes,  como estava faminto,  lembra-se da comida que o “bom mordomo” Guarnes havia trazido, bebe também uma garrafa de vinho. Quando se preparava para guardar o tesouro no alforje, sente uma grande queimação no em todo corpo, debate-se feito um animal na grama e descobre que também havia sido traído, Guanes envenenara as duas garrafas que trouxera. Rui morre e o tesouro permanece sem dono no meio do bosque.

É possível, mesmo em uma leitura não muito atenta, identificar algumas características naturalistas da obra. Crítico mordaz da sociedade, Eça usa um conto ambientado na Idade Média para retratar os costumes da sociedade que lhe era contemporânea e próxima. Debrucemos-nos, primeiramente, sobre a questão simbológica do número três, bastante presente no conto (“os três irmãos...”, “três chaves...”, “três fechaduras...”, “três senhores...”, “três alforges...”, “três botelhas de vinho...”, etc.). O número três provavelmente possua o significado de totalidade, de plenitude. O Três também é, segundo alguns estudiosos, o número da família; pai, mãe e filhos. Mas o que se nota no conto é a ausência da família progenitora, existem apenas três irmãos, sem qualquer referência aos pais. É possível, a partir desse fato, subtender que nesse lar existe a ausência de referências. Rui, Guanes e Rostobal, nunca poderiam demonstrar sentimentos de compaixão, porque não receberam. Agiam como os “mais bravis lobos”, o ambiente determina o comportamento dos três. Não se poderia receber amor de quem só havia experimentado miséria. Os três irmãos, numa análise determinista, eram joguetes das condições do meio em que foram criados, que condicionaram suas atitudes e sentimentos.

Outro fator naturalista no conto é a pintura do homem como ser animalesco. Já dissemos aqui que os três irmãos eram lobos vorazes, dormiam na estrebaria junto com as mulas. Quando encontram o tesouro, seus olhos flamejam como olhos de cães famintos disputando por um osso. Rostabal “rosna” enquanto planeja a morte de seu irmão. Entretanto, a cena que retrata da melhor maneira o parentesco do homem com o animal é descrita já no final do conto, quando Rui agoniza ao beber o vinho envenenado: “Recuou, caiu para cima da relva, que arrancava aos punhados, e que mordia, mordendo os dedos, para lhe sugar a frescura. Ainda se ergueu, com uma baba densa a escorrer-lhe nas barbas: e de repente, esbugalhando pavorosamente os olhos, berrou, como se compreendesse enfim a traição...”.

Existe, porém, um paradoxo singular nessa aproximação do homem com o animal. Durante a narrativa, um dos artifícios utilizados por Rui na tentativa de convencer Rostabal a matar o irmão, é dizer que Guanes está doente e que, portanto, o dinheiro não lhe servirá por muito tempo. Em certo momento da prédica ele comenta “Tu não o ouves, de noite, como tosse? Ao redor da palha em que dorme, todo o chão está negro do sangue que escarra!”. Os dois irmãos são incapazes de se apiedar do companheiro doente, não lhes importava se tossia ou sangrava a noite, seu foco era o ouro a mais que poderiam. Depois  do assassinato, Rui tenta erguer a mula de Guedes que havia caído junto com seu dono, mas ela resiste pois “não queria deixar o seu amo assim estirado, abandonado, ao comprido das sebes.” Mesmo a débil mula sente compaixão por seu dono, apieda-se do corpo estirado.

Os animais e a natureza exercem um papel interessante no conto, são testemunhas da decadência humana frente à ganância e atuam como anunciantes da tragédia que fatalmente viria. Logo após encontrarem os torrões de ouro, os irmãos riem prazerosamente “num riso de tão larga rajada que as folhas tenras de olmos, em roda, tremiam...”, elas não balançavam ou movimentavam-se, elas tremiam como seres temerosos dos acontecimentos futuros. Frentes às ideias homicidas e as largas passadas de Rui e Rostabal “as ervilhas silvavam”, quando preparavam a emboscada, “um vento leve arrepiou na encosta as folhas dos álamos” e ainda “um bando de corvos passou sobre eles, grasnando”. Os corvos reaparecem grasnando quando Rui está prestes a beber o vinho envenenado e no último parágrafo, dois deles pousam sobre o corpo de Guanes.

A tragédia é anunciada também através de outros fatores que, se fossem a tempo percebidos, evitariam mortes. A letra que Guanes cantarola enquanto cavalga é sugestiva:

Olé! Olé!

Sale la cruz de la inglésia,

Vestida de negro luto...

O caráter fúnebre da canção já previa a atitude de Guanes envenenando a bebida dos irmãos. As garrafas de vinho são outro prenúncio da tragédia final. O inteligente Rui reparou nas duas garrafas trazidas por Guanes, quando este deveria ter trazido três, mas na euforia momentânea Rui não se importou, esqueceu-se que o irmão, assim como ele, estava pré-determinado a ser traiçoeiro e sem amor fraterno.

Finalmente, é necessário que se comente sobre o precioso símbolo que o tesouro representa no conto. Contextualizemos então a situação dos três rapazes; deseperançosos da vida e de tudo, procuram rastros de alguma caça ou algum tortulho que pudesse saciar a fome. São apenas animaizinhos, crias sem cuidado que sobrevivem sem qualquer esperança no futuro. Mas os três, juntos, encontram o tesouro, a possibilidade de algo melhor, de uma redenção. Eufóricos cogitam uma nova vida sem as misérias habituais. Quem dera continuassem como lobos! Porém, a natureza humana chama mais alto, a necessidade de ter, de suplantar o próximo conclama os corpos animalescos a agiram como humanos, a matarem-se uns aos outros por pura ganância.

Centenas de observadores no mundo captam opiniões ímpares sobre o conturbado relacionamento do homem com as riquezas. Doutos, indoutos, poetas, populares e presidentes conceituam, cada um à sua maneira, o que  consideram sobre os bens materiais. Para muitos, eles são um meio de alcançar, ou complementar, a felicidade. Outros enxergam a riqueza e o apego a ela como “raiz de todos os males”. Eça, artista importante no cenário português, “antena da raça”, capaz de captar mais além, através do conto “O tesouro” deixa sua contribuição: a ganância do homem é mais forte do que a frágil, talvez inexistente, unidade e fraternidade humana.

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